Autora: Elizama Messias
Neste texto propomos o diálogo sobre a Lei 10.639/03, que completa vinte anos de promulgação. Esta lei altera as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei n. 9.394/96, colocando como obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em toda Educação Básica, e institui o dia 20 de novembro como data importante a ser vivenciada no calendário escolar. A proposta deste texto é percorrer, ainda que de maneira breve, a trilha de alguns aspectos históricos, legais, conceituais e didático-metodológicos do que hoje conhecemos como Educação das Relações Étnico-raciais (ERER), campo de pesquisas e intervenções que começa a ganhar destaque com a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira (DCNERER), em 2004, instituída pelo parecer, n. 03 de 2004, do Conselho Nacional de Educação.
Medidas afirmativas como esta se fazem necessário devido a existência do Racismo Estrutural que atinge diferentes setores da vida social, para este diálogo convidamos o filósofo e jurista Silvio Almeida, atualmente Ministro dos Direitos Humanos, que em seu livro Racismo Estrutural, afirma que o mesmo “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2019:25). O autor critica as análises sobre o racismo que o abordam como um fenômeno individual e patológico, afirmando que para estudar o fenômeno é preciso está atento a sua imbricação com a economia, com a política, com o direito e com a ideologia.
Antes de prosseguir é importante responder as seguintes perguntas: Quem reivindica o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas? Qual a importância desta reivindicação?
A lei 10.639/03, é fruto da luta histórica do Movimento Negro Brasileiro, que há décadas promove uma educação antirracista através de diferentes iniciativas de suas entidades espalhadas pelo Brasil a fora. Dentre estas iniciativas, destaca-se o importante papel dos grupos culturais, tais como afoxés, escolas de samba, Maracatus, Samba – reggae, capoeira, etc. Além da impressa negra, das casas de religiões de matrizes afro-indígenas, da criação de clubes e associações que promoviam aulas de alfabetização e cursos profissionalizantes, preparando negros e negras para enfrentar os desafios da sociedade brasileira fortemente marcada pelo racismo. Com isto queremos dizer que a lei 10.639/03, é uma reinvindicação dos movimentos negros, que inclusive, já promoviam diversas ações para uma educação antirracista.
No entanto, o estado brasileiro em seu processo de criação e popularização da escola republicana, eurocêntrica, monocultural, violenta e reprodutora do racismo, não só excluía a presença física de negros e negras dos bancos escolares, assim como apagava sua presença simbólica nos currículos. Apesar disto, esta mesma escola que produz o apagamento das identidades negras, vai se universalizando, e passa a ser vista como lugar estratégico de luta contra o racismo através da transformação de seu currículo e ainda como um mecanismo que pode contribuir para a redistribuição de renda ao proporcionar o acesso ao mercado de trabalho de maneira mais qualificada e em profissões, antes, majoritariamente ocupadas por brancos. Ou seja, a escola pode ser vista como um lugar de reconhecimento dos legados e identidades do povo negro e de redistribuição, articulando ganhos simbólicos e materiais (Fraser, 2006). Por isso se faz importante a reinvindicação por uma educação antirracista, onde a lei 10.639/03, é um dos mecanismos para sua concretização.
A lei 10.639 foi sancionada no dia 09 de janeiro de 2003, consolidando através de texto legislativo um longo processo de discussões e debates impulsionados pelo Movimento negro. Neste contexto é importante destacar a importância ainda na década de 1980, do Deputado Federal Abdias do Nascimento que por meio da Lei nº 1.332/1983, do artigo 8º e inciso I, coloca aquilo que podemos chamar de embrião da lei 10.639/03:
I – Incorporar ao conteúdo dos cursos de Hist6ria Brasileira o ensino das contribuições positivas dos canos e seus descendentes à civilização brasileira, afro – sua resistência contra a escravidão, sua organização e ação (a nível social, econômica e política) através dos quilombos, sua luta contra o racismo no período p6s-abolição (BRASIL, 1983, p.9).
Na década seguinte o deputado Paulo Paim, apresenta um projeto de lei com a mesma matéria, mas este é arquivado em 1995. A LDBEN é sancionada em 1996, depois de um longo processo de discussão, mas não contempla a matéria de maneira específica, já em março de 1999, há o projeto Lei nº 259, formulado pelos deputados Ben-Hur Ferreira e Esther Grossi, que estabelecia a inclusão do ensino de história afro-brasileira nos estabelecimentos oficiais de ensino. Neste mesmo período as leis orgânicas de muitos municípios incluíam artigos que tratavam do ensino de história afro-brasileira. Mas foi só em 2003, que o presidente Luiz Inácio Lula sanciona a lei 10.639, como prometido em campanha política.
O que é Educação das Relações Étnico-raciais e como desenvolvê-la na escola:
Como dito no início do texto o movimento social negro, sempre desenvolveu e ainda desenvolve, práticas educativas antirracistas tendo como base o conceito de raça em seu aspecto social. Com a continuidade das discussões e teorizações a respeito do assunto, entra no debate o termo “étnico-racial”. Este termo coloca o enfoque na articulação entre aspectos da cultura afro-brasileira e a raça negra, pois, o racismo no Brasil provoca atitudes discriminatórias direcionadas não somente as pessoas negras, mas também a tudo que remeta ao seu legado histórico cultural, como exemplo podemos citar o racismo religioso praticado contra as religiões de matrizes africanas. Ainda é importante frisar que o termo etnia refere-se a um grupo social cuja identidade se define pela comunidade de língua, cultura, tradições, monumentos históricos e territórios (BOBBIO, 1992, p. 449).
Com isto nos cabe a pergunta: o que é educação das relações étnico-raciais? Em colaboração no processo de construção participativa da política educacional do Museu da Abolição, elaboramos a seguinte conceituação sobre ERER:
“a educação para as relações étnico-raciais pode ser tomada como campo de estudos da educação, que busca sistematizar conceitos e metodologias em diálogo estreito com a teoria curricular, com os estudos culturais e com a luta antirracista. Ela intenciona refletir, questionar e desconstruir as relações assimétricas de poder construídas pelos diferentes grupos étnico-raciais em contexto de colonização e diáspora, podendo ser desenvolvida em espaços formais e não formais de educação”. (PEMAB, 2022, no prelo)
De acordo com as Diretrizes para Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história africana e afro-brasileira, a ERER tem como objetivo:
“divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial
…para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada”. (Brasil, 2004, p. 02).
É preciso elucidar que o racismo não tem o seu nascedouro na escola, mas, dentro dela assume características próprias que passa pelo silenciamento de crianças e jovens negros, pelo não reconhecimento e invalidação dos saberes produzidos pela intelectualidade negra, pela difusão de estigmas e estereótipos através do livro didático e da literatura infantil, contribuindo assim para a perpetuação do racismo dentro e fora do ambiente escolar.
Combater o racismo e contribuir para a implementação da educação das relações étnico- raciais é uma tarefa de todas as pessoas, independente de seu pertencimento étnico-racial. No ambiente escolar, não é difícil ver a “personificação da luta contra o racismo”, que faz com que algumas pessoas acreditem que este é um papel exclusivo de negras e negros. É muito comum ver pessoas que não são lidas como negras se omitirem ao debate, atribuindo toda a responsabilidade de lidar com a temática aos docentes negros e as docentes negras. Neste caso é importante repetir o que disse Ângela Davis: “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
Para desenvolver a ERER dentro das escolas é preciso realizar um trabalho continuo e sistemático envolvendo todos os componentes curriculares. Isto significa dizer que a celebração do 20 de novembro deve ser a culminância do que foi desenvolvido ao longo do ano todo na escola e não o único momento para trabalhar a temática.
A personificação da luta contra o racismo faz com que muitos professores/as desenvolvam um trabalho solitário o ano inteiro, mas o ideal é que as ações sejam coletivas,
envolvendo todo corpo docente. O trabalho com a ERER nas escolas deve primar pelo fortalecimento das identidades negras, deve contribuir para desmistificar o mito da democracia racial e deve articular as lutas contra o machismo, a homofobia, a transfobia e contra o racismo praticado para com os/as negros/as, indígenas e outras identidades étnico-raciais oprimidas ao longo da história.
Este ano a lei 10.639/03 completa vinte anos, durante este tempo o debate vem sendo pautado, mas as ações concretas para a sua efetivação ainda carecem de vontade política. Neste processo podemos dizer que houve um aprofundamento nos estudos e produções acadêmicas sobre o tema, da mesma forma que documentos importantes com as diretrizes (2004) e o plano nacional para a sua implementação (2009), foram construídos e lançados. Alguns estados e municípios tem criado instancias administrativas para tratar do assunto, mas na maioria das vezes, estas instancias são sufocadas pelo racismo institucional persistente. A fome, o desemprego, a falta de acesso a saúde e educação ainda persistem para uma maioria negra. O que se espera do estado brasileiro neste ano comemorativo é a implementação de políticas eficazes de combate ao racismo na educação, isto se faz com investimentos robustos, passando pela melhoria da qualidade da escola que atende a população majoritariamente negra e pela valorização dos docentes que atendem este alunado. Levantar a bandeira das lutas por uma escola plural, democrática e de qualidade também é lutar contra o racismo.
Bibliografia:
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 264 p. ISBN 978-85-98349-75-6 BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1992. Brasil. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10 de janeiro de 2003.
. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2004.
_. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005a.
. Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: SECAD; SEPPIR, jun. 2009
.PL 1332/1983. Câmara dos Deputados Federais. Brasília, S/D. Disponível em: htps://
www.camara.leg.br/propostas-legislativas/190742. Acesso em 11 nov. 2023.
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós- socialista”, Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 231-239, 2006
IBRAM. Caderno da Política Educacional do Museu da Abolição, Recife, 2022, no prelo.
Quem é Elizama Messias ?
Mulher negra, periférica, mãe solo de três crianças, candomblecista e juremeira, integra a comunidade religiosa Ilê Axé Alaketú Oyá T’Ogun, é pedagoga, mestra em educação e especialista em Museus, identidades e comunidades. Atua na educação básica há mais de vinte anos e em paralelo trabalha com formação inicial e continuada de professores/as. Pesquisa e desenvolve ações sobre ERER, desde que iniciou o trabalho na educação pública municipal de Recife em 2003. Atualmente coordena o Laboratório de Educação das Relações Étnico-raciais, Laberer/UFPE, é coordenadora pedagógica da Escola Municipal de Arte João Pernambuco, produtora cultural com atuação no campo do patrimônio imaterial e pesquisadora da educação em museus, é cofundadora e coordenadora da Associação Epicentro Terra Viva e estudante do doutorado em educação na UFPE.