Por Cíntia Virgínia Sales
A política institucional de tentativa do esquecimento dos 21 anos de ditadura civil-militar de 1964-1985 no Brasil, não conseguiu silenciar completamente a sociedade. Os estudos sobre ditadura no campo da História e do Ensino de História realizadas pelas universidades, espaços de memória e pesquisa são bons exemplos desse não apagamento.
A historiografia sobre a Doutrina de Segurança Nacional implementada na América do Sul, mais especificamente no Cone Sul entre as décadas de 1960 a 1980, porpõe o enfrentamento ao silenciamento implantado pelos regimes de exceção e alicerçados no terrorismo de Estado e na cultura do medo. Novos olhares trazidos pelo amadurecimento das pesquisas, pelo acesso à documentação, pela disposição de questionar memórias construídas compõe a resistência.
Esses novos olhares relacionam a ditadura brasileira no contexto da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) a qual se distingue por estratégias minunciosamente pensadas para ampliar a cultura do medo como meio de dominação política e controle da população, baseada em técnicas apuradas do terror físico, ideológico e psíquico. Apesar das diferenças nas formas de exercer o terror de um Estado para outro, os regimes de exceção guardaram semelhanças, entre eles a criação do inimigo interno, neste caso o comunistas.
A partir da concepção de que todos são potencialmente suspeitos, cria-se a estrutura de informação para monitorar a todos, mas sobretudo os insurgentes. Estalecendo, portanto a cultura do medo cujas práticas compreendiam: o sequestro como maneira de detenção; o interrogatório policial com tortura; a censura e contrainformação; a prática do desaparecimento. Ou seja, a “cultura do medo” como estrutura imprescindível da doutrina para se atingir os fins esperados, bem como para a sua sustentação.
A DSN não foi a única de base ideológica que amparou as ditaduras civis-miliares de segurança nacional consolidadas no Cone Sul entre as décadas de 1960 a 1980; mas foi a que criou uma base de sustentação para o pensamento de direita na região.
A DSN difundida pelos Estados Unidos, no pós-Segunda Guerra Mundial, e adequada pela Escola das Américas no Canal do Panamá, no Brasil, com a Escola Superior de Guerra (ESG) visava a preparar os oficiais latino-americanos para a guerra permanente e total voltada aos insurgentes.
Um exemplo da violência da DSN foi o desaparecimento de aproximadamente 90 mil pessoas no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, consequência direta de tal geopolítica. Vale ressaltar que, a violência do desaparecimento impacta sobremaneira nos familiares, amigos, instituições, ou seja, nos que ficam, pois consiste na morte da morte, ou seja, há que se conviver com a presença-ausência, a ausência-presença.
Outra discussão relevante sacerca das ditaduras civis-militares de segurança nacional, trata-se do apagamento da participação civil na ditadura que passou a ser identificada apenas de ditadura militar. Para vários historiadores a Ditadura Civil-militar de 1964-1985 teve relevante participação civil, não sendo, por conseguinte, exclusivamente militar. E mais enquanto a sociedade brasileira não discutir a sua efetiva atuação na ditadura, vai se furtando de refletir sobre suas “tendências autoritárias e conservadoras, que permanecem vivas, e permanecerão vivas até que se construa uma reflexão profunda a respeito dela” (AARÃO, 2006, p. 13).
As consequências do terrorismo de Estado foram incontáveis, entre elas podemos pontuar a privatização da memória, ou seja, a dificuldade de simbolização e representação, ausência de providências reparatórias, determinação do esquecimento. Isto é, permanência de um passado que não passa, cujo propósito foi, e permanece sendo, condicionar a experiência traumática delimitada às vítimas, seus familiares e seus círculos sociais, sem que sejam elaboradas, pensadas, discutidas ou problematizadas coletivamente já que atravessou toda a sociedade.
Vale ressaltar que, a manutenção da tentativa do total silenciamento advém de setores que se beneficiaram do apagamento de sua participação na ditadura: políticos influentes, mídia hegemônica, altos empresários, instituições civis e organizações religiosas.
Na contramão dos que buscam manter o silenciamento, encontram-se segmentos sociais marginalizados, ex-presos políticos, familiares de desaparecidos, entidadades de direitos humanos, partidos políticos, sindicatos os quais se empenham para que as situações-limites experienciadas sejam elaboradas. Entretanto, mesmo lutando para romper o silenciamento não têm condições de criar ações de grande repercução ou políticas públicas para discutir com seriedade a última ditadura brasileira.
Este ano a Ditadura Civil-Militar de 1964-1985 completa 58 anos, durante esse tempo a sociedade e o Estado brasileiro buscam não debater francamente os 21 anos do regime de exceção. Mesmo com iniciativas importantes como foi a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), não podemos desconhecer a estruturação da política do silêncio do Estado em vários espaços do espectro social, sobretudo nos órgãos coercitivos.
O campo educacional e sindical desempenham um papel relevante ao se colocarem contrários às políticas do silenciamento formuladas no período ditatorial e cujos tentáculos estão desnudos no governo Bolsonaro. Justamente pela ascensão da ultra-direita ao poder precisamos, a partir do retorno a um governo democrático, pensar 1964 com a seriedade que o nosso passado nos impõe para que para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
REIS FILHO, Daniel Aarão.Ditadura militar e revolução socialista no Brasil. Palestra ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho (Universidade Federal Fluminense). Disponível em: <http://periodicos.unesc.net/index.php/historia/article/viewFile/213/213>. Acesso em: 05 abril 2019.
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